sexta-feira, 17 de julho de 2009

O coração do menino e o menino do coração


"O miúdo nasceu com as acertadas aparências. Só em altura de ensaiar primeiras marchas lhe notaram o defeito, o enviezamento nos pezinhos, cada um não sendo como cada qual. Sobre as pegadas estrábicas a avó vaticinou:
- Este miúdo vai caminhar para dentro dele mesmo. Depois outra malconveniência se somou: o rapaz engrumava com o riso parvo de quem finge concordância. Não há medo maior que o riso parvo de quem finge concordância. Não há medo maior que não se entender humana voz de outra humana pessoa.
A mãe conduziu a criança ao hospital. O doutor mergulhou o ouvido no peito e se ensurdeceu de tanto coração. O menino tinha o pulsar à flor da pele. O médico parecia entusiasmado com o inédito caso.
- Necessitamos que ele fique, para mais exames...
- Nem pensar. Esse menino entrou comigo, há de sair comigo.
- Mas a senhora nem faz idéia... temos que encontrar um nome para a doença dele.
- Como um nome?
- Essa doença: eu tenho que encontrar um nome!
- Mas esse nome, será que vai curar a doença dele?
O médico sorriu. Ai essa gentinha simples, tão exímia em ser pensada pelos outros. E assim, sorriso descaindo no lábio, ficou olhando, mãe e filho se afastarem no corredor.
O menino levava em sua mão, descaída uma pétala, uma carta que ele mesmo redigira. Queria ter dado ao doutor esse papelinho que sua inabilidade enchera de letrinha. Com desatenta ternura, a mãe lhe tirou o papel dos dedos e o lançou no latão. A mania desse mirabolhante! Deveria ser outra dessas tantíssimas cartas que o tontinho fingia escrever para sua apaixonada priminha.
- Você ainda se carteia com Marlisa? O menino negou com veemência. A mãe sacudiu a cabeça. Enfim, quanto ela se esforçara em vão. Valera a pena insistir em ensinamentos em quem nunca aprendera? Também Marlisa, a visada sobrinha, jamais cedera em abrir as cartas. Nem valia a pena espreitar a caligrafia do atarantonto. Uns andaram na lua. No caso, a lua é que andava nele.
Certa vez, o rabiscador daqueles engatafunhos desabou no fundo do tempo. O menino faleceu, em azulidão de pele, todo frio como se nenhuma luz dele tivesse vontade. Os médicos acorreram para levarem o corpo e lhe administrarem a extrema autópsia. Lhe arrancaram o coração, o universátil músculo, enormíssimo como um planeta carnudo. O órgão ficou em vitrina, exposto à ciência e aos noticiários. Os cardiologistas disputavam, em sucessivos colóquios, um apropriado nome para batizar a anormalidade. Passaram-se os dias, anônimos.
Era um fim de tarde, a prima Marlisa, ao arrumar as poeiras da casa, deparou com um monte das inúteis cartas. Sopesou-as antes de as lançar no fogo. Hesitou por um segundinho: o moço sabia abecedar uma simples linha? Pelo sim, pelo talvez, ela se aventurou a espreitar o primeiro envelope. E ali se sentou em espanto, ruga na fronte, mãos enrolando um demorado cabelo. Ficou horas no assentado degrau. Aquilo não eram cartas, mas versos de uma lindeza que nem cabiam no presente mundo. Marlisa inundou a tristeza, tingiram-se as letras. Quanto mais a prima primava em seguir leitura mais rimava com nenhuma outra mulher, toda ela fora do contexto de existir. A moça se apaixonava postumamente? Mas ali, arremessada na escada, nem Marlisa imaginava o que, no simultâneo tempo, se passava com o coração do primo que Deus e a ciência guardavam.
Pois que, na vitrina gelada do Hospital, mal se rasgou o primeiro envelope, o coração do primo deflagrou em sobressalto. Um oh se estilhaçou nos visitantes. E à medida que Marlisa, mais longe que mil paredes, ia desfolhando versos, o coração mais se desembrulhava, tremelusco-fuscando. Até que, daquele novelo vermelho, se viu desprender um braço, mais adiante um pé e a redondez de um joelho e mais argumentos que faziam valer o fato: aquele coração estava em flagrante serviço de parto! E se confirmava, vinda das entranhas do útero cardíaco, uma total recém-criança. E quando, finalmente, o parto se desfechou, se viu que o menino nascera igual ao seu progenitor de peito. Fazia medo como um quimicava o outro a papel chapado. Em tudo se assemelhavam, menos no desenho do pé. Os pés do nascido eram divergentes, como quem viesse para procurar, fora de si, gente de outras histórias.”

{Mia Couto}
Encontrei essa linda e comovente estória por "acaso", num belo blog que, mesmo ainda não tendo navegado com mais vagar por ele, recomendo e verão porquê, logo de início.

Um comentário:

  1. Comovente conto, lindo em estrutura e estilo!
    Espero que postes mais contos como esse!

    O coração cresce com o amor, com o bem-querer de quem nos quer bem!

    Beijoe!!!

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