sexta-feira, 31 de julho de 2009

Viva como as flores

Em um antigo mosteiro budista, um jovem monge questiona o mestre:

"Mestre, como faço para não me aborrecer? Algumas pessoas falam demais, outras são ignorantes, muitas são indiferentes. Sinto ódio das mentirosas e sofro com as que caluniam."

"Pois viva como as flores," orientou o mestre.

"E como é viver como as flores?" Perguntou o discípulo.


"Repare nas flores," falou o mestre, apontando os lírios que cresciam no jardim.

"Elas nascem no esterco, entretanto, são puras e perfumadas. Extraem, do adubo malcheiroso, tudo que lhes é útil e saudável... mas não permitem que o azedume da terra manche o frescor de suas pétalas.

É justo inquietar-se com as próprias imperfeições, mas não é sábio permitir que os vícios dos outros o perturbem. Os defeitos deles são deles e não seus. Se não são seus, não há razão para aborrecimento.

Exercite, pois, a virtude de rejeitar todo mal que vem de fora. Isso é viver como as flores."



{autoria desconhecida/imagem: Márcia B.}

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Árvore "torta"

Um dia, diante da velha árvore torta, um pinheiro todo vergado pelo tempo, o sábio da aldeia ofereceu a sua própria casa para aquele discípulo que "conseguisse ver o pinheiro na posição correta". Todos se aproximaram e ficaram pensando na possibilidade de ganhar a casa e o prestígio, mas como seria "enxergar o pinheiro na posição correta"? O mesmo era tão torto que a pessoa candidata ao prêmio teria que ser no mínimo contorcionista.
Ninguém ganhou o prêmio e o velho sábio explicou ao povo ansioso que, ver aquela árvore em sua posição correta, era "vê-la como uma árvore torta". Só isso!

Nós temos, em nós, esse jeito, essa mania de querer "consertar as coisas, as pessoas, e tudo o mais" de acordo com a nossa visão pessoal. Quando olhamos para uma árvore torta, é extremamente importante enxergá-la como árvore torta, sem querer endireitá-la, pois é assim que ela é. Se você tentar "endireitar" a velha árvore torta, ela vai rachar e morrer, por isso é fundamental aceitá-la como ela é.

Nos relacionamentos, é comum um criar no outro expectativas próprias, esperar que o outro faça aquilo que ele "sonha" e não o que o outro pode oferecer. Sofremos antecipadamente por criarmos expectativas que não estão alcance dos outros. Porque temos essa visão de "consertar" o que achamos errado. Se tentássemos enxergar as coisas como elas realmente são, muito sofrimento seria poupado. Os pais sofreriam menos com os seus filhos, pois, conhecendo-os, não colocariam expectativas, que são suas, na vida dos mesmos, gerando crianças doentes, frustradas, rebeldes e até vazias. Tente, pelo menos tente, ver as pessoas como elas realmente são, pare de imaginar como elas deveriam ser, ou tentar consertá-las da maneira que você acha melhor. O torto pode ser a melhor forma de uma árvore crescer. Não crie mais dificuldades no seu relacionamento, se vemos as coisas como elas são, muitos dos nossos problemas deixam de existir, sem mágoas, sem brigas, sem ressentimentos.

E, para terminar, olhe para você mesmo com os "olhos de ver" e enxergue as possibilidades, as coisas que você ainda pode fazer e não fez. Pode ser que a sua árvore seja torta aos olhos das outras pessoas, mas pode ser a mais frutífera, a mais bonita, a mais perfumada da região, e, isso, não depende de mais ninguém para acontecer, depende só de você.
Pense nisso!


{Paulo Roberto Gaefke/foto: Márcia B.}

Mudar de casa



É bom mudar de casa, de janela,


arrumar de outra maneira as ilusões,


tratar de coisas puras como tintas e sofás,


pôr ordem entre os livros e a vida,


simular a liberdade.


Parece-nos possível voltar a acreditar


na mão que nos estende um pé de salsa,


na pechincha da beleza, quando passa


no poente da razão.


Apetece cometer uma loucura,


comprar um telescópio,


decorar o canto nono dos Lusíadas,


subir umas escadas do avesso,


pensar que nunca mais teremos frio.




{José Miguel Silva. Foto de Kan Gory Paw}

terça-feira, 28 de julho de 2009

A complicada arte de ver

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão_ era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso _porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver_ eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

{Rubem Alves}

terça-feira, 21 de julho de 2009

Desenvolvimento da capacidade de resiliência: uma alternativa frente aos desafios da contemporaneidade?


“A resiliência costuma ser definida como uma característica comum entre as pessoas que costumam responder satisfatória e saudavelmente aos processos de mudança e de incerteza ao longo da vida.


Ao tomarmos por referência as características do mundo contemporâneo, verifica-se o quanto o desenvolvimento da resiliência é imprescindível. Contudo, já os antigos gregos, por acreditarem ser muito perigoso supor que planos sempre se materializam de acordo com o esperado, referiam-se, de alguma forma, à necessidade de adquirir resiliência, quando mencionavam a 'inteligência prática', que vem da valorização da adaptabilidade e da crença que a preparação e a escolha permitem ao sujeito influenciar seu futuro, como uma característica que faria as pessoas se prepararem melhor para enfrentar mudanças (Flach, 1991; Conner, 1995).


Pessoas resilientes sentem os mesmos medos e apreensões que todo mundo quando se envolvem em uma mudança. Porém, elas geralmente são capazes de manter sua produtividade, qualidade e competência, assim como o equilíbrio de sua saúde emocional, física e social, ao mesmo tempo que vencem desafios e alcançam a maioria dos objetivos, sejam eles pessoais ou coletivos. A resiliência, portanto, está associada à capacidade de aprender continuamente consigo mesmo, com os outros, com o contexto.


O desenvolvimento da resiliência permite às pessoas ampliar sua capacidade de recuperação ao serem expostas aos estresses da mudança, bem como a capacidade de enfrentar a ambiguidade, ansiedade e perda de controle que acompanham qualquer processo de mudança, fortificando-se com as experiências, em vez de se sentirem esgotadas.


Para Conner (1995), algumas pessoas tendem a ver, sobretudo, as implicações perigosas das mudanças, enquanto outras tendem a se concentrar nas promessas de novas oportunidades que podem ser encontradas nas mudanças. Esse autor identifica o primeiro grupo como o de 'pessoas orientadas pelo perigo', porque essas pessoas vêem a crise da mudança como algo ameaçador e podem se sentir vitimadas por ela. Costumam interpretar a vida em termos binário e sequencial, esperando que as mudanças progridam lógica e ordenadamente e, portanto, têm dificuldades em lidar com a ambivalência que envolve as situações de mudança. Quando confrontadas com a mudança, geralmente são reativas, e não produtivas.
Já o segundo grupo, o das 'pessoas orientadas pela oportunidade', apesar de reconhecerem os perigos, colocam a mudança como uma vantagem em potencial a ser explorada, em vez de um problema a ser evitado, isto é, possuem uma visão otimista da vida, que lhes permite lidar com a confusão e as adversidades da mudança, sendo capazes de se reorientarem, revendo seus propósitos sem abandoná-los. Esses propósitos podem ser expressos por crenças religiosas, convicções políticas, filosóficas ou por um projeto de vida. Para essas pessoas, a vida é vista como um conjunto de variáveis interativas, constantemente em modificação, e supõem que o futuro trará um novo conjunto de oportunidades e escolhas que levarão a desafios mais complexos. Acreditam que as frustrações e desconfortos fazem parte do processo de adaptação que a mudança exige. As pessoas orientadas pela oportunidade geralmente são independentes e auto-suficientes, mas reconhecem suas limitações e sabem pedir ajuda, pois confiam nos relacionamentos pessoais. Elas aceitam a mudança como parte natural da vida e sabem equilibrar suas expectativas, tendo como parâmetro as possibilidades da realidade.


É importante salientar que um comportamento orientado para o perigo não é necessariamente ruim, pois não há nada de errado em resistir à mudança, pelo contrário: a resistência é uma resposta saudável e natural a expectativas quebradas. Em determinadas situações, esse tipo de resposta é tão legítima e apropriada quanto a orientada pela oportunidade, mas quando essas reações (orientadas pelo perigo) se tornam predeterminadas, instintivas e habituais, geram problemas. Além disso, todos nós temos as duas tendências, diferenciando-nos, contudo, pela intensidade e pelas circunstâncias em que essas tendências são manifestadas.


Nesse sentido, é pertinente salientar que, embora possamos falar em características das pessoas resilientes, isso não significa que tais pessoas não possam apresentar um baixo grau de resiliência diante de determinadas dimensões ou situações de vida e em diferentes momentos da vida. Isto ocorre, fundamentalmente, pela dinamicidade que compõe o funcionamento da personalidade de cada sujeito (Castilhos, 2002).


Conner (1995) aponta elementos que identificam o comportamento das pessoas orientadas pela oportunidade e refletem as cinco características básicas da resiliência: positividade, vêem a vida como desafiadora, mas cheia de oportunidades; foco, têm uma visão clara do que querem alcançar e realizar; flexibilidade, são maleáveis ao responder à incerteza; organização, desenvolvem abordagens estruturadas para gerenciar a ambiguidade; proação, induzem mudanças em vez de se defenderem delas.


Por sua vez, Flach (1991) aponta as seguintes características de pessoas resilientes:
capacidade de aprendizagem;
tolerância à frustração e ao sofrimento;
criatividade na solução de problemas;
habilidade de resgate da autoestima quando em situações em que ela está abalada; sentimento de auto-respeito;
autonomia, liberdade e interdependência;
habilidade de fazer e manter amigos (vínculos afetivos);
disposição para sonhar;
apurado senso de humor;
interesses diversificados;
capacidade de determinar os limites de profundidade de uma relação de dependência;
percepção de si e do que está a sua volta;
contextualização interna e externa;
perspectiva de vida sustentada em uma filosofia vital e processual, que permite interpretar as experiências da vida como um todo, extraindo um significado pessoal.


Flach (1991) refere-se, contudo, ao importante papel que um ambiente de apoio exerce na sustentação da resiliência. Segundo esse autor, é possível identificar vários elementos que podem facilitar a resiliência – e não é nenhuma surpresa que esses elementos se ajustem perfeitamente às características básicas da personalidade resiliente. Isso inclui:


estruturas coerentes, mas flexíveis;
um grupo de pessoas que possibilitem o contato humano acolhedor;
sentido de comunidade;
comunicação aberta e receptividade a novas ideias;
respeito, reconhecimento, aceitação;
limites de comportamento definidos e realistas;
garantia de privacidade;
tolerância às mudanças e aos conflitos;
busca de reconciliação;
valores humanos construtivos; esperança e empatia.


Pensando em ambientes resilientes, cabe refletir sobre o quanto as organizações estão conseguindo fazer a gestão de tais atributos em seu clima organizacional, por exemplo. Na mesma linha, Fernandes (1996) afirma que é preciso atentar para uma gama de fatores que, quando presentes em uma situação de trabalho, refletem-se na satisfação e participação do trabalhador, mobilizando suas energias e atualizando seu potencial.


À medida que as organizações adquirem vida através das pessoas que as compõem, observa-se que aumentar o grau de resiliência de uma organização só é possível quando há avaliação, canalização e desenvolvimento de potenciais, num movimento de aprendizagem contínua e interdependente, capaz de transformar competência individuais em coletivas. E competência coletiva está essencialmente vinculada a um estado de consciência coletiva que se traduz e se consolida na capacidade das pessoas de refletir e agir interdependentemente. Em última análise, isso remete à construção de um ambiente de trabalho mais propício à realização humana, e, portanto, com mais qualidade de vida.” (sic)


{Patrícia Martins Fagundes}
Fonte: Gestão contemporânea de pessoas: novas práticas, conceitos tradicionais. / organização por Claudia Bitencourt. Porto Alegre: Bookman, 2004.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

O coração do menino e o menino do coração


"O miúdo nasceu com as acertadas aparências. Só em altura de ensaiar primeiras marchas lhe notaram o defeito, o enviezamento nos pezinhos, cada um não sendo como cada qual. Sobre as pegadas estrábicas a avó vaticinou:
- Este miúdo vai caminhar para dentro dele mesmo. Depois outra malconveniência se somou: o rapaz engrumava com o riso parvo de quem finge concordância. Não há medo maior que o riso parvo de quem finge concordância. Não há medo maior que não se entender humana voz de outra humana pessoa.
A mãe conduziu a criança ao hospital. O doutor mergulhou o ouvido no peito e se ensurdeceu de tanto coração. O menino tinha o pulsar à flor da pele. O médico parecia entusiasmado com o inédito caso.
- Necessitamos que ele fique, para mais exames...
- Nem pensar. Esse menino entrou comigo, há de sair comigo.
- Mas a senhora nem faz idéia... temos que encontrar um nome para a doença dele.
- Como um nome?
- Essa doença: eu tenho que encontrar um nome!
- Mas esse nome, será que vai curar a doença dele?
O médico sorriu. Ai essa gentinha simples, tão exímia em ser pensada pelos outros. E assim, sorriso descaindo no lábio, ficou olhando, mãe e filho se afastarem no corredor.
O menino levava em sua mão, descaída uma pétala, uma carta que ele mesmo redigira. Queria ter dado ao doutor esse papelinho que sua inabilidade enchera de letrinha. Com desatenta ternura, a mãe lhe tirou o papel dos dedos e o lançou no latão. A mania desse mirabolhante! Deveria ser outra dessas tantíssimas cartas que o tontinho fingia escrever para sua apaixonada priminha.
- Você ainda se carteia com Marlisa? O menino negou com veemência. A mãe sacudiu a cabeça. Enfim, quanto ela se esforçara em vão. Valera a pena insistir em ensinamentos em quem nunca aprendera? Também Marlisa, a visada sobrinha, jamais cedera em abrir as cartas. Nem valia a pena espreitar a caligrafia do atarantonto. Uns andaram na lua. No caso, a lua é que andava nele.
Certa vez, o rabiscador daqueles engatafunhos desabou no fundo do tempo. O menino faleceu, em azulidão de pele, todo frio como se nenhuma luz dele tivesse vontade. Os médicos acorreram para levarem o corpo e lhe administrarem a extrema autópsia. Lhe arrancaram o coração, o universátil músculo, enormíssimo como um planeta carnudo. O órgão ficou em vitrina, exposto à ciência e aos noticiários. Os cardiologistas disputavam, em sucessivos colóquios, um apropriado nome para batizar a anormalidade. Passaram-se os dias, anônimos.
Era um fim de tarde, a prima Marlisa, ao arrumar as poeiras da casa, deparou com um monte das inúteis cartas. Sopesou-as antes de as lançar no fogo. Hesitou por um segundinho: o moço sabia abecedar uma simples linha? Pelo sim, pelo talvez, ela se aventurou a espreitar o primeiro envelope. E ali se sentou em espanto, ruga na fronte, mãos enrolando um demorado cabelo. Ficou horas no assentado degrau. Aquilo não eram cartas, mas versos de uma lindeza que nem cabiam no presente mundo. Marlisa inundou a tristeza, tingiram-se as letras. Quanto mais a prima primava em seguir leitura mais rimava com nenhuma outra mulher, toda ela fora do contexto de existir. A moça se apaixonava postumamente? Mas ali, arremessada na escada, nem Marlisa imaginava o que, no simultâneo tempo, se passava com o coração do primo que Deus e a ciência guardavam.
Pois que, na vitrina gelada do Hospital, mal se rasgou o primeiro envelope, o coração do primo deflagrou em sobressalto. Um oh se estilhaçou nos visitantes. E à medida que Marlisa, mais longe que mil paredes, ia desfolhando versos, o coração mais se desembrulhava, tremelusco-fuscando. Até que, daquele novelo vermelho, se viu desprender um braço, mais adiante um pé e a redondez de um joelho e mais argumentos que faziam valer o fato: aquele coração estava em flagrante serviço de parto! E se confirmava, vinda das entranhas do útero cardíaco, uma total recém-criança. E quando, finalmente, o parto se desfechou, se viu que o menino nascera igual ao seu progenitor de peito. Fazia medo como um quimicava o outro a papel chapado. Em tudo se assemelhavam, menos no desenho do pé. Os pés do nascido eram divergentes, como quem viesse para procurar, fora de si, gente de outras histórias.”

{Mia Couto}
Encontrei essa linda e comovente estória por "acaso", num belo blog que, mesmo ainda não tendo navegado com mais vagar por ele, recomendo e verão porquê, logo de início.